MUDANDO DE TOM: O PESO DO MUNDO E O CONTRA-PESO
Vez por outra o assunto vai mudar um pouco por aqui. Também o tom.
Por exemplo, hoje.
O ano começou com uma densidade pesada difícil de ignorar. A polarização se aprofunda, e enquanto a Europa avança na corrida armamentista, impulsionada por pressões internas e externas, é impossível não perceber que mais cortes significativos em educação e pesquisa estão em preparação. Explico: uma parte considerável dos investimentos em pesquisa acadêmica será, em breve, redirecionada, sem disfarces, para a área de geodefesa.
Não estou sendo pessimista, mas realista. As publicações da EDA (European Defense Agency) há tempos já indicam e anunciam essa “tendência”: "(…) Estados-Membros da UE concordaram, em 2015, em mover progressivamente a pesquisa focada exclusivamente em áreas civis e de uso duplo (Horizon 2020) para um Programa de Pesquisa em Defesa da Europa, financiado pelo orçamento da UE a partir de 2021, como parte do European Defence Fund (EDF)." A invasão da Ucrânia acelerou esse processo e trouxe as justificativas necessárias.
Um horror alimenta o outro. E assim vamos embarcando na geléia geral do medo que se inscreve na lógica da fobocracia contemporânea…
“Receita bem antiga do poder, a fobocracia tomou-se a indústria do espectácuJo aterador utilizada para fins estratégicos, de modo a legitimar as policias e as guerras.
Como se comporta o fobocrata? Sucede-lhe desencadear uma guerra com o único pretexto do medo e da ameaça provocados por aquele que acaba por agredir.
É pois necessário começar por construir a ameaça e, para tal, fabricar cenários de Lerror e pavor do inimigo. Uma vez construída a figura do terror, pode fazer-se que rsta reine para se pôr ao abrigo da ameaça. Ataca-se para clten·orizar, contra-ataca-se para tranquilizar. O medo está associado a figuras da violência social e a figuras da violência guerreira e terrorista. O que importa é a produção de um quadro geral que facilite a associações rápidas, as identificações imediatas e indiscutíveis (…)”
O trecho acima é de Marie-José Mondzain. Ela nos fala de como o medo é amplificado, instigado por um poder que se alimenta da nossa incapacidade de reagir, da nossa impotência frente ao que se apresenta como inevitável. A fobocracia, como ela a define e descreve, é um regime de governo baseado na producão e manejo do medo, onde a insegurança é capitalizada, transformando-se no motor do controle social e político. É um ambiente onde o medo não apenas modela as decisões, mas redefine a própria possibilidade de resistência ou de invenção de alternativas.
Para quem ainda tenta olhar além das divisões e dos podres poderes, o cenário atual é bem brutal, com o perdão da rima pobre. E ficamos, feito Drummond, perdidos na noite suja a perguntar: "E agora, José?"
O mesmo Carlos talvez respondesse que no meio de tanta máquina mortífera, é preciso manter aceso "um projeto de vida à flor da vida". O que é isso? O meu tem sido a construção de um grande evento acadêmico-artístico-cultural-cívico que vai acontecer em Dacar, em junho de 2025. Um encontrão de vozes e ideias, ainda que nada fácil ou simples de construir. Chama-se Africa-Ásia: um novo eixo do conhecimento, e é fruto de uma parceria entre o International Institute for Asian Studies e a Universidade Cheikh Anta Diop, de Dacar. Uma Universidade de grande porte, 100.000 estudantes, creio que como a USP.
Sabemos que, apesar do título, esse eixo de conhecimento e troca não é nada novo, mas há uma novidade estratégica em promovê-lo, concretizá-lo, incentivá-lo. Inspira-se - mas não de forma acrítica - nas iniciativas de não-alinhamento do “sul” emergente durante a Guerra Fria– como a histórica Conferência de Bandung, que no próximo abril completa 70 anos.
De vez em quando escreverei sobre isso, meio fora de tom, talvez falando sozinha, escutando um antigo fazendeiro do ar, querendo alguma boa notícia vindo, pela janela, no sal da maresia de um poema, ou na matéria de um jornal que não existe.
Laura Erber, Scheveningen, 2025.
Você se interessa e age no campo de uma geopolítica da produção do conhecimento. Muito pertinente. E é instigante ver pela ótica de um eixo Ásia-África