CIGARROS DE BALI
Foto: © Koko Trisilo, sede da fábrica Gudang Garam, em Kediri, Java Oriental.
Na minha adolescência – e provavelmente na de muitos cariocas – a Indonésia se resumia a uma coleção de estereótipos básicos: uma terra de natureza tropical exuberante, praias virgens, surfe incessante, souvenires de madeira e o onipresente Gudang Garam, batizado por nós de Cigarro de Bali, que circulava nas noites do Rio de uma certa década, embora, na realidade, venha de Java. A Indonésia era, assim, uma fantasia tropical com cheiro de cravo - a caricatura de um paraíso distante e pitoresco – tal como certas imagens de Brasil de que frequentemente nos queixamos –, sem que realmente nos atentássemos para a complexidade e enormidade demográfica daquele país-arquipélago. E, embora a fantasia do paraíso tropical tenha um lastro no real, reflete bastante bem o nosso próprio provincianismo brasileiro, de grande ilha continental colada pelas costas aos países hispano-hablantes.
Um pouco mais tarde, quando comecei a me interessar por teatro, me deparei com a canção Surabaya Johnny, escrita por Bertolt Brecht e Kurt Weill, que pode ser ouvida no YouTube, na genial interpretação de Lotte Lenya:
A canção foi escrita para a comédia musical Happy End, escrita por Elisabeth Hauptmann sob pseudônimo Dorothy Lane, com canções de Brecht e Kurt Weill, e estreou em Berlim no turbulento ano de 1929, onde permaneceu em cartaz por curtíssima temporada. Jonnhy Surabaya é cantada por uma das personagens centrais da peça, Lilian, e fala do relacionamento com um canalha chamado Johnny, por quem ela teria sido apaixonada, e que a abandonou e deixando suas promessas sem cumprir.
O tom e entonação são entretanto irônicos, e também um pouquinho reveladores da ideia que a personagem tem da Ásia. A canção começa com o relato de um diálogo entre os dois, contendo desde mal-entendidos a expectativas dissonantes, até configurar a canalhice holística do tal João Surabaya. Jonnhy diz que vem da Birmânia e que para lá Lilian deveria partir com ele. Ela, iludida, mas não totalmente inconsciente do mau-passo em que se arrisca, pergunta com o que ele trabalha. Ele diz que o seu trabalho não tem nada a ver com o mar, ele trabalha na ferrovia. É uma forma simples e criticamente eficaz com que Brecht ao mesmo tempo enuncia e frustra o imaginário de aventuras e belezas marítimas que rondam tanto a ideia da Birmânia (hoje Mianmar) quanto a das 13 mil ilhas que formam a Indonésia, sonhadas ou pensadas de longe.
SURABAYA
Foto: © Laura Erber, Surabaya, 2023.
Surabaya que aparece na peça como sobrenome-apelido de Johnny é a capital de Java Oriental, com 3 milhões de habitantes. Tem uma China Town animadíssima e ostentatória, com enormes boates e hotéis de luxo emergindo em rápida velocidade.
Foto: © Laura Erber, Surabaya, 2023.
Ainda hoje Surabaya é referida como a “cidade dos heróis”. O termo surgiu após a batalha de Surabaya, em 10 de novembro de 1945, quando as forças locais enfrentaram os exércitos britânicos e os colonizadores holandeses que não aceitaram a proclamação da independência por Sukarno e Mohammad Hatta. A batalha foi um confronto brutal entre as forças indonésias, que buscavam garantir a independência do país, e as forças coloniais que tentavam restaurar sua autoridade após a Segunda Guerra Mundial.
Estima-se que cerca de 10.000 indonésios tenham morrido, e embora a independência não tenha sido um resultado direto dessa batalha, ela foi fundamental para o movimento anti-colonial e para a independência efetiva do país, que só ocorreria em 1949.
Foto: © Laura Erber, UNAIR, Universitas Airlangga. Campus da universidade durante o evento ICAS#13 em 2023. Mais sobre o ICAS#13: https://www.iias.asia/the-newsletter/article/icas-13-crossways-knowledge-international-conference-festival-surabaya
BRICS
A entrada da Indonésia no BRICS merecia mais atenção do que parece estar recebendo pela mídia brasileira. Ela representa um marco significativo tanto no cenário geopolítico quanto cultural e histórico. Do ponto de vista geopolítico, a adesão de um país com mais de 270 milhões de pessoas, e com uma população extremamente diversificada, uma economia emergente forte, e uma posição estratégica no Sudeste Asiático, reforça a crescente influência do BRICS no contexto global, desafiando a hegemonia das potências ocidentais e promovendo uma maior diversidade nas decisões econômicas e políticas internacionais.
A Indonésia, como a maior economia da ASEAN, também traz com ela uma rede de conexões comerciais e políticas com outros países da região, ampliando o alcance do grupo. Culturalmente, a Indonésia, com sua rica herança de diversidade étnica, religiosa e linguística, adiciona uma camada importante de complexidade ao BRICS, enriquecendo o debate sobre a construção de um mundo multipolar, onde vozes de diferentes tradições e sistemas culturais podem se fazer ouvir. Sua adesão é, portanto, um reflexo do fortalecimento das alianças entre países do chamado Sul Global, que buscam uma maior autonomia e voz nos processos de governança mundial. Como isso também pode se traduzir em conexões culturais e criativas, em trocas no sentido mais vital que envolva pessoas e não apenas interesses comerciais é ainda um grande ponto de interrogação para os defensores do Sul Global como alternativa as dinâmicas tradicionais Norte-Sul.
A entrada na Indonesia no BRICS também reaviva a memória histórica sobre o papel fundamental que a Indonesia de Sukarno teve no movimento do Não-Alinhamento, durante a Guerra Fria.
Sukarno, o primeiro presidente da Indonésia independente, foi um líder carismático e um dos principais arquitetos da Conferência de Bandung em 1955, que reuniu países da Ásia e da África e se tornou a base para o movimento que buscava promover a independência política e econômica das nações recém-descolonizadas, sem se alinhar com as superpotências da época, os Estados Unidos e a União Soviética. Sukarno, com sua retórica de autodeterminação e neutralidade, ajudou a moldar a identidade do movimento como uma alternativa à polarização global, defendendo a soberania nacional, o respeito mútuo entre os países e a solidariedade entre o Sul Global. Seu papel no movimento do Não-Alinhamento, que continuou a crescer nas décadas seguintes, não apenas destacou a Indonésia no cenário internacional, mas também consolidou Sukarno como uma figura de referência na luta contra o imperialismo e pela cooperação internacional entre nações independentes.
Para quem tiver interesse deixo aqui o link para uma parte do discurso de Sukarno na abertura da Conferência de Bandung:
E não por acaso, muitos que advogam pelo desenvolvimento e fortalecimento de políticas adequadas aos interesses do Sul Global reconhecerão nele várias ideias e princípios que ainda ecoam nas discussões contemporâneas sobre justiça social, autodeterminação e cooperação internacional, refletindo a importância de um mundo multipolar e mais equitativo.
A Conferência reuniu 29 países africanos e asiáticos que buscavam superar suas diferenças nacionais e estabelecer uma nova ordem mundial, distante tanto do comunismo quanto do capitalismo. Embora existam percepções divergentes sobre a consistência e o impacto concreto de seu legado, ela se tornou uma inspiração para os movimentos terceiro-mundistas e tricontinentais. Especialistas ainda se questionam: a Conferência foi uma reação ideológica pós-colonial à velha ordem imperialista ou um esforço genuinamente inovador para promover um regionalismo baseado em relações mais equitativas e dignas? Seria ela apenas uma retórica sem substância ou uma iniciativa concreta na construção de novas políticas de cooperação entre os países da África e da Ásia?
Muitas dessas questões permanecem relevantes no nosso mundo contemporâneo, e a grande incógnita é como o BRICS, com sua configuração complexa, será capaz de realmente oferecer alternativas viáveis e efetivas.
Laura Erber
Haia, 19 de Janeiro de 2025.
Links:
Bandung Revisited: The Legacy of the 1955 Asian-African Conference for International Order (org. See Seng Tan, Amitav Acharya)
https://books.google.nl/books/about/Bandung_Revisited.html?id=AtCcSHKaY-cC&redir_esc=y
Legal a evocação de Sukarno e do movimento dos não-alinhados. É mais ou menos a idéia por trás dos Brics. Lindas imagens e sons da Indonésia.
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Genial! A Lotte é sensacional, e visitando Surabaya melhor ainda...