Há uma pracinha no alto do Jardim Botânico onde, nos meus primeiros anos neste planeta que nos coube habitar, costumavam me levar para passear. De tempos em tempos, essa praça ressurge nos meus sonhos, nem sempre serenos. Nada a ver com aquela primeira infância. Muitos anos depois, foi ali que me despedi, sem saber, de uma certa pessoa para sempre. Ele talvez soubesse, eu não, mas a memória desse dia existe com uma intensidade quase tátil, na concretude dos detalhes e na sensação de poder revisitá-la ou revivê-la.
Conhecida no bairro como Praça dos Ingleses – talvez pela dificuldade de pronunciar o seu nome oficial – foi projetada pelo arquiteto Azevedo Neto e inaugurada em 1960. Depois de muitos anos de desleixo, a pracinha passou a ser cuidada pela Associação Alto-JB e, até onde sei, continua aprumada.
Azevedo Neto, seu arquiteto, é figura pouco conhecida da história do Rio, mas foi responsável pela criação de várias áreas de lazer e praças na cidade. Grande parte dos seus projetos originais foi perdida por conta das sucessivas intervenções urbanísticas, mas algum vestígio ainda pode ser encontrado no Jardim de Alah (Ipanema), Praça Antero de Quental (Leblon), Praça Cardeal Arcoverde (Copacabana), Praça da Piassava (Fonte da Saudade, Lagoa), Praça do Lido (Copacabana), Praça General Osório (Ipanema), Praça Nossa Senhora da Paz (Ipanema), Praça Saens Peña (Tijuca), Praça Santo Epitácio (IAPI da Penha).
São tantas praças… mas creio que o próprio Azevedo Neto acabou por não dar nome a nenhuma.
A praça por ele projetada no alto do Jardim Botânico teve seu nome oficial sugerido pelo diplomata Cyro de Freitas-Valle, grande promotor das artes brasileiras no exterior. Mas, mesmo que o nome fosse de um boa praça, dificilmente um bom nome de praça…
Dag Hammarskjöld, que oficialmente dá nome à praça dos meus sonhos bons e ruins, foi um diplomata sueco de grande prestígio, lembrado até hoje como uma inspiração na luta pela paz. Porém, como as coisas deste mundo costumam ser rugosas, ele também é lembrado pelo papel nos acontecimentos que levaram ao assassinato de Patrice Lumumba, no Congo, revelando como a ONU, muitas vezes, atuou como uma aliança armada à la carte.
Cyro de Freitas-Valle, que sugeriu o nome da pracinha do Jardim Botânico, conhecia Hammarskjöld pessoalmente. Entre outras ocasiões, os dois estiveram juntos na inauguração dos painéis de Portinari na sede da ONU, em 1958.
(O secretário-geral Dag Hammarskjöld com os embaixadores brasileiros Cyro de Freitas-Valle e Jayme de Barros diante de mural de Portinari na ONU / Acervo iconográfico Projeto Portinari)
Dag Hammarskjöld, o diplomata sueco que dá nome à praça dos meus sonhos bons e ruins, é frequentemente lembrado como uma inspiração na luta pela paz. No entanto, seu envolvimento nos eventos que levaram ao assassinato de Patrice Lumumba, no Congo, revela como a ONU também pode atuar como uma espécie de aliança armada sob demanda.
O legado de Hammarskjöld oscila entre seu importante papel mediador no pós-guerra, reforçando sua imagem de idealista em um cenário global polarizado, e sua postura controversa durante a crise do Congo, especialmente no que diz respeito aos interesses internacionais em Katanga, rica em recursos como o urânio, essencial para as armas nucleares norte-americanas.
Secretário-Geral da ONU de 1953 até sua morte, em 1961, em uma queda de avião perto de Ndola, na Rodésia do Norte (atualmente Zâmbia), Hammarskjöld enfrentou críticas por sua recusa em apoiar o governo eleito de Lumumba, o que gerou oposição dos países não alinhados e do bloco comunista. Contudo, sua decisão teve o firme respaldo dos Estados Unidos e da Bélgica, cujos interesses prevaleceram, e suas manobras durante a crise congolesa contribuíram para a queda de Lumumba.
Trilha sonora para um golpe de estado
Um filme recente trouxe de volta todos esses nomes ao som da música que amamos. Chama-se Trilha sonora para um golpe de estado (ou, no original, Soundtrack for a Coup d’État), foi dirigido por Rob Lemkin e Nana Oforiatta Ayim. O filme é fruto de uma extensa pesquisa, articulando materiais de arquivo e citações que acompanham os eventos políticos e os golpes de Estado na África. O fio condutor recai sobre como figuras de destaque da música negra norte-americana, como Louis Armstrong, Nina Simone, Dizzy Gillespie e Max Roach, foram instrumentalizadas pela CIA para promover a agenda anti-soberania dos Estados Unidos no continente africano. Esses artistas tornaram-se peças-chave em uma estratégia de propaganda sofisticada, visando enfraquecer os movimentos de independência e fortalecer regimes alinhados aos interesses norte-americanos.
Esteticamente, o filme poderia ser colocado em um jogo de contrastes e aproximações com o célebre La Hora de los Hornos, de Fernando Solanas, tanto pelo uso intenso da edição e do material de arquivo, quanto pela força com que utiliza citações e textos em destaque. Pessoalmente prefiro a estética gráfica de Solanas, - o trabalho de texto no filme de Lemkim e Ayin é visualmente problemático, a meu ver. O filme traz à tona conteúdo histórico ultravalioso para o debate contemporâneo, mas perde a oportunidade de aprofundar a questão central - certamente difícil de abordar - que fundamenta sua linha narrativa: o papel dos artistas e da diplomacia cultural nas tensões geopolíticas da Guerra Fria e a elaborada estratégia de cooptação ideológica da CIA.
Apesar disso, o eloquente uso do material de arquivo nos transporta para os congressos internacionais da época e recoloca o assassinato de Patrice Lumumba em perspectiva, oferecendo uma visão mais ampla da intervenção internacional na África.
O assassinato de Lumumba, em janeiro de 1961, foi resultado de uma conspiração que envolveu diretamente os Estados Unidos e a Bélgica, com a conivência da ONU. Documentos desclassificados em 2002 revelam que a CIA não apenas apoiou financeiramente os opositores de Lumumba, mas também forneceu armas e treinamento militar, especialmente a seu oponente Mobutu. Além disso, a agência elaborou planos para envenená-lo, embora esses não tenham chegado a termo.
“Ninguém sai ileso dessa história”, afirma Brian Urquhart, autor de um artigo, no estilo “retrato de grandes figuras”, no site oficial da ONU. Com essa frase, Urquhart revela não apenas a parcialidade de sua estratégia reformista, entretanto bem bolada, mas também o deleite quase perverso em desmantelar a figura política de Lumumba, reduzindo-o a um estereótipo conveniente para a narrativa ocidental.
Transcrevo:
"Até hoje, especialmente entre as minorias oprimidas, Lumumba é visto como um mártir do colonialismo e do capitalismo ocidental, que alimenta a ganância. O verdadeiro Lumumba, como visto por aqueles que tentaram ajudá-lo, desperta pouco interesse. Um jovem corajoso, inteligente, instável e inexperiente, que cometeu erros desastrosos. Lumumba não tinha preparação para responsabilidades públicas, e quando o poder e a fama chegaram de forma repentina, a situação caótica do Congo e sua própria personalidade provaram ser demais para ele. Embora fosse sinceramente empenhado na busca pela unidade nacional congolesa, ele não tinha ideia prática de como alcançá-la, tampouco a paciência e a disciplina necessárias para atingir esse objetivo tão difícil. Não se interessava pelo árduo trabalho do governo eficaz e exigia resultados e soluções imediatas. Era insensível às consequências humanas de suas ações. Se tivesse tido mais tempo e poder, provavelmente teria se tornado o pior dos tiranos. Nada disso, no entanto, justifica aqueles que conspiraram tão eficientemente para matá-lo.”
Trilha sonora para tempos convulsivos
Para contradizer a imagem de um jovem rebelde, instável, impulsivo e inadequado para a liderança política, sugiro ouvir na íntegra o célebre Discurso da Independência proferido por Lumumba em junho de 1960, quando era Primeiro Ministro. Seu discurso continua a ser uma resposta contundente à persistente oposição à soberania dos países africanos. (Digno de nota: recentemente, Emmanuel Macron declarou que alguns países africanos “esqueceram de agradecer à França”… o que gerou mais tensão nas relações entre a França e os países da região do Sahel).
A cerimônia da independência congolesa foi marcada pela presença do Rei Balduíno, que, em um ato de pompa e arrogância colonial, se vangloriou do "desenvolvimento" promovido pelo colonialismo belga. O monarca fez também referências ao "gênio" de seu tio-avô, Leopoldo II, sem mencionar as atrocidades cometidas durante o regime brutal do Estado Livre do Congo, espécie de latifúndio privado e parque de barbáries do rei Leopoldo.
Lumumba, excluído da programação oficial do evento, aguarda o fim do discurso de Balduíno e aproveita a oportunidade para, de forma contundente e histórica, trazer para a celebração a história concreta dos congoleses sob o domínio belga.
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Nos anos noventa, em meus caminhos para a UERJ, onde estudei Letras, havia sempre um muro com a frase em letras gigantes: "LUMUMBA VIVE". Talvez ainda esteja lá.
Não encontrei sinal de praça com seu nome no Rio, mas em São Paulo, há sim, uma rua Patrice Lumumba.
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Nos meus sonhos, vejo a pelagem de um caxinguelê castanho avermelhado cruzando os jardins. E percebo que ainda estamos vivos no mesmo tempo e espaço. Sei disso porque sinto um rosto comovido e distante, ao meu lado.
Bom domingo.
Laura Erber
Haia, 2 de fevereiro de 2025.
*Em tempo, deixo aqui o link para uma ótima reflexão sobre o filme Trilha sonora para um golpe de estado assinada por João Lanari Bo: https://vertentesdocinema.com/soundtrack-to-a-coup-detat/