O 8 de março é sempre uma boa oportunidade para revisitarmos expressões lamentáveis e figuras cuja posição pública merece ser lembrada por seu caráter pouco admirável. Hoje me ocorreu lembrar de Paulo Francis, jornalista conhecido por suas opiniões polêmicas e voz embriagada. Lembrei também da expressão "Lobby do Batom" - usada de forma pejorativa para desqualificar as mulheres que participaram do processo constituinte de entre 1987 e 1988.
Naquele período, a mídia conservadora não perdia oportunidade de ridicularizar a participação feminina na política, associando suas demandas a algo trivial. O discurso reacionário sugeria que questões como os direitos das mulheres e a proteção contra a violência doméstica eram meros detalhes, questões bem menos importantes que os "grandes" temas políticos que deveriam ser o foco da Constituinte.
O termo lamentavelmente é ainda propagado em diversos textos de forma anedótica e acrítica, reforçando a ideia de fundo segundo a qual as mulheres estariam apenas "enfeitando" a política.
E quanto ao Francis, compartilho aqui um fragmento de fala - talvez de uma entrevista no Roda Viva - que exemplifica perfeitamente como a história do feminismo pode ser distorcida por má fé e filtros misóginos. Seu discurso, embora recheado de referências e datas que tentam transmitir a idéia de conhecimento sólido do tema, revela uma interpretação superficial e até tosca. A semelhança com perspectivas e falas da direita bolsonarista de hoje é evidente - o que muda aqui é apenas o verniz da articulação, mas no fundo é a mesma incapacidade intelectual e falta de disposição para compreender movimentos sociais complexos em seus contextos históricos, e o seu legado.
A argumentação de Francis interessa por ser uma obra prima da simplificação, o que lhe permite identificar a luta feminista a uma mera concessão masculina, desmerecendo completamente o papel das mulheres na conquista de direitos. Esse tipo de discurso é a síntese de uma visão seletiva, que busca reforçar o mito de “salvamento masculino”.
Vale assistir:
Neste 8 de Março, sinto falta das ruas brasileiras e das manifestações que costumam marcar esta data no Brasil. Mas aproveito este dia para dedicar algumas palavras à minha orientanda de Doutorado, Victoria Page, que acaba de concluir a escrita de sua tese sobre a construção visual dos movimentos feministas na América Latina, a ser defendida em breve na Universidade Católica Portuguesa.
A trajetória de Victoria levanta questões essenciais que vão além de sua experiência individual: o que significa estudar as formas de resistência à violência patriarcal/fratriarcal enquanto essas mesmas violências continuam a se perpetuar ao nosso redor, implicando-nos constantemente? Esta não é uma questão para tratamento teórico asséptico; requer uma metodologia capaz de construir espaços criticamente intensos, onde a experiência da pesquisadora não pode ser dissociada do impacto que sofre pelo objeto pesquisado, sobretudo quando há trabalho de campo envolvido.
Acompanhei Victoria em seu percurso de conversas e encontros importantes para o amadurecimento da tese, mas também muitas vezes árduo, em que a pesquisa não apenas desafiava seu entendimento, mas afetava suas emoções e seu corpo. Ela enfrentou uma dupla tarefa: ao buscar compreender as dinâmicas de resistência e estratégias visuais e performáticas dos movimentos feministas, se via desafiada a refletir sobre sua própria posição enquanto mulher pesquisadora inserida em um contexto de profunda violência estrutural.
Esse processo de reflexão contínua, misturando teoria e vivência, é profundamente significativo e revela como a experiência de quem pesquisa nas áreas de Humanidades e Ciências Sociais - hoje tão atacadas - não pode ser separada de seu objeto, especialmente quando o tema envolve questões tão onipresentes quanto a violência de gênero.
Vale lembrar que a mulher que pesquisa o feminismo na academia não apenas estuda um objeto, mas confronta constantemente as próprias estruturas de poder que seu trabalho analisa. Esta dupla posição — ser simultaneamente sujeito e objeto de conhecimento — coloca a pesquisadora feminista do feminismo em uma situação de constante negociação entre o distanciamento frequentemente exigido pela academia e a intensidade da experiência vivida das opressões que ela documenta e analisa. É uma posição que demanda um certo malabarismo epistemológico: a disposição de questionar não apenas as hierarquias de gênero, mas também as hierarquias que sustentam o próprio conhecimento acadêmico.
Uma pesquisa de doutorado sobre feminismo e estratégias criativas de resistência e visibilização obriga a pesquisadora a habitar constantemente as tensões entre teoria e prática, transformando o próprio ato de produção de conhecimento em um exercício de posicionamento político-existencial, onde cada escolha se torna também uma forma de enfrentamento às estruturas que são objeto de sua análise.
Laura Erber
Haia, 8 de março de 2025.