Ah, que você escape no instante
em que tenha alcançado sua definição melhor
José Lezama Lima
No último dia 8 de fevereiro, celebramos o aniversário de Tunga, o artista, amigo e interlocutor que partiu cedo, mas cuja obra e pensamento (indistinguíveis) continuam ecoando entre nós.
Para muitos artistas, críticos, curadores e produtores de arte brasileiros, sobretudo baseados no Rio, a casa de Tunga era uma espaço de conversas inspiradoras e de encontros significativos.
Tunga levava a sério a especulação sobre questões que nos configuram como seres sensíveis. Fazia questão de manter sua casa aberta a essas experiências de conversa fiada, encontros e trocas, transformando-as, de fato, em um experimento. Ali naquele seu recanto verde, por algumas horas, libertava os artistas do espírito de competição e narcisismo isolador, conduzindo-nos a algo mais expansivo, incerto e generoso.
[© Gabi Carrera]
Das muitas conversas de que ainda me lembro, as mais vívidas eram sobre literatura. Ele gostava de contrapor Lezama Lima a Hegel e por vezes também a Borges, como um contraponto provocador diante de interlocutores europeus que, embora mencionassem Borges com frequência, raramente tinham ouvido falar de Lezama Lima. De certo modo, Tunga era continuador do projeto de uma “expressão americana” — título do célebre livro de Lezama — na tentativa de captar e ativar uma causalidade poética capaz de desafiar a causalidade (e fatalidade) histórica. Daí seu interesse pelo Barroco, não como “estilo de época” mas como uma força emancipatória do sensível, que implode a noção de tempo com a qual em geral operamos. Também se interessava pelo nexo entre religião, psicanálise e antropologia na investigação das intensidades emocionais que produzem transes, possessão, superexcitação dos sentidos, delírio e arte.
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Em uma época em que a arte se tornou predominantemente didática — com incontáveis cursos online ensinando até mesmo a ensinar — afirmando-se muitas vezes como um para-discurso sociológico, faz falta um espaço onde questões prementes (inclusive as de natureza política) sejam fermentadas nos circuitos da síntese criativa, atravessadas por visões transpoéticas, rigorosas e abertas. Não para adoçar ou suavizar a brutalidade do real, mas para evitar que a arte se reduza à ressonância redundante das atrocidades do mundo em que vivemos.
Tenho certeza de que hoje aquelas tardes do final dos 90 e início dos 2000 seriam reduzidas a uma veleidade burguesa, mas nelas as conversas seguiam rumos inesperados, - e também os convidados e suas falas eram muitas vezes inesperados.
Não se trata de nostalgia por uma comunidade orgânica—até porque não diria que ali havia propriamente uma comunidade—mas da constatação de que, no campo cultural, há uma forte inclinação para valorizar os espaços de exibição de discursos enquanto os espaços de troca se tornam cada vez mais atrofiados. Nesse sentido, vale lembrar que as salas de aula universitárias – muitas delas, ao menos – continuam sendo um dos raros espaços onde pode emergir um discurso diferente, sem a necessidade imediata de se ajustar às exigências performáticas do mercado cultural, por mais bem-intencionadas que essas possam ser.
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Numa nota mais pessoal, eu e Tunga vivemos uma experiência bastante radical de proximidade com a morte, com um intervalo de poucos meses de diferença. Depois de estar plenamente recuperada, cheguei a organizar uma espécie de "festa da ressurreição", na qual Tunga foi um dos convidados de honra, e a médica que liderou a equipe que me tratou também esteva presente. Recordo com clareza de Tunga, naquela ocasião, conversando com minha médica sobre astronomia…
Infelizmente, todos já partiram.
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Aproveito este espaço para compartilhar o link do texto que escrevi em homenagem a Tunga quando de sua morte, em junho de 2016, e também o link para a resenha da bela exposição de desenhos, com curadoria de Luisa Duarte e Evandro Salles, realizada em 2018 no Museu de Arte do Rio, reunindo trabalhos produzidos entre 1975 e 2015.
UM ADEUS A TUNGA - Breve homenagem, texto originalmente publicado no Blog do Instituto Moreira Salles.
EXPOSIÇÃO DE DESENHOS REVELA O INFINITO MANANCIAL DE TUNGA - Resenha crítica da exposição realizada no MAR em 2018.
Laura Erber
Haia, 9 de fevereiro de 2025.
Beleza pura. Sem comentários adicionais...