Naquelas semanas mais exigentes do ensino médio (que para mim se chamava segundo grau), eu costumava ir até a casa de uma amiga na Urca para estudar matemática e física, e eventualmente outras matérias. Eu gostava tanto mas tanto daquela rua que um dia acabei indo morar lá, já adulta e com dois filhos. Naquelas tardes e noites de estudo diante da boca banguela da Baía de Guanabara lembro bem dos infinitos deveres de disciplinas que eu apreciava em teoria (e realmente gostava da teoria), mas tinha verdadeiro horror aos exercícios e testes. Sempre encontrava um jeito - criativo e inusitado - de errar; na verdade, para mim, a lógica de exame de matemática e física consistia numa astuta indução ao erro, e eu simplesmente me deixava guiar pela possibilidade do erro até seu inevitável encontro.
Foi por conta dessas matérias que desenvolvi alguns rituais e estratégias de estudo, para as outras não carecia, estudar era sempre de algum modo prazeroso. Uma das estratégias era gregária, como mencionei, evitar a solidão do estudo e ir para a casa das amigas mais versadas nessas ciências exatas e, entre uma fofoca e outra, fazer juntas uma paulada de exercícios. A companhia ajudava a não desistir, e a procrastinação ficava de certo modo controlada. Funcionava bem, embora a conversa fiada sempre acabasse prevalecendo no fim.
Outra estratégia envolvia escolher a música certa e embarcar na solidão do estudo em minha própria casa. Lembro tanto dessas longas horas quando a adolescência invadia os pensamentos com toda a sua força disruptiva de anseios, ensejos, desejos e volteios existenciais. Nessas horas, a música salvava. Era a amiga que não estava fisicamente presente, mas que ajudava a manter o fôlego mesmo nas matérias mais áridas e tediosas. A trilha sonora perfeita transformava os deveres odientos em algo quase suportável.
Pois bem, por conta de meus filhos, recentemente descobri um canal surpreendentemente reconfortante para as horas de estudo chamado Lofi Girl. Parece simples à primeira vista, e de certo modo é, mas também é delicadamente engenhoso. Ele captura exatamente aquela atmosfera de solidão da adolescente em situação de estudo, transformando-a em um fenômeno global que conecta jovens do mundo todo - e de todos os gêneros - através dessa específica forma de solidão.
Lofi Girl é um canal francês do YouTube e também um selo musical criado em 2017, que transmite 24/7 música lo-fi hip hop acompanhada por uma animação no estilo japonês de uma garota estudando ou relaxando com seu gato na janela. A transmissão ao vivo, constantemente atualizada, evita interrupções por anúncios e oferece uma trilha sonora que, dizem os participantes, ajuda a manter o foco.
[imagens do canal Lofi Girl]
O canal traz sempre uma imagem levemente animadade uma garota estudando ou relaxando - a Lofi Girl ou"garota dos beats de hip hop lofi 24/7". Mas o que primeiro me chamou atenção nesse canal, fora os comentários singelos e até comoventes, foi o tom nostálgico da trilha sonora. Pois de fato o canal parece funcionar como uma trilha sonora não apenas para os estudos, mas para a vida de quem estuda, onde ao mesmo tempo que a pessoa estuda, ela se vê estudando dentro do filme da sua vida. É como se a experiência privada do estudo se transformasse num fenômeno auto-observável: você é apenas um ponto luminoso num apartamento qualquer, um entre tantos estudantes noturnos ou diurnos espalhados por prédios anônimos em cidades que nunca dormem ou despertam completamente. Não tenho palavras para descrever bem essa experiência, mas há nela um nível de metaconsciência que torna a solidão adolescente daquele momento de estudo uma experiência quase cinematograficamente bela, independentemente da aridez ou enfado que a matéria estudada possa produzir.
O criador do canal, Dimitri Somoguy, que nasceu em 1995, inicialmente usou a personagem Shizuku Tsukishima do filme "Sussurros do Coração" (1995), do Studio Ghibli, para representar o canal, com imagens dela estudando ou escrevendo. O imenso sucesso das transmissões levou o canal a ser removido por violação de direitos autorais, foi quando Somoguy decidiu criar sua própria personagem, mas sem abandonar a estética e atmosfera Ghibli. E a nova garota foi escolhida por meio de uma chamada aberta a artistas de todo e qualquer lugar. Segundo o Wikipedia, que conta um pouco da história do canal, em 2 de fevereiro de 2022, LoFi Girl atingiu a marca de dez milhões de inscritos. Uma das transmissões estava no ar desde 22 de fevereiro de 2020 e tinha mais de sete milhões de curtidas. Segundo a Wikipedia, "o canal comemorou o marco com um evento festivo no chat."
E devo dizer que foi isso o que mais me impressionou ali: o evento no chat. Não necessariamente festivo. O evento que vi emergir nos comentários em tempo real foi o de uma leve conexão entre solidões. Sugiro acessarem o canal para visualizarem e lerem os comentários. Num dos vídeos a menina aparece estudando no seu quarto de perfil, é dia lá fora, a cidade pode ser Lisboa, o gato sentado no parapeito balança o rabinho; noutro vídeo ela está fazendo anotações num caderno na varanda do apartamento, que parece ser mesmo em Lisboa. Os comentários são fascinantes, desde pessoas agradecendo pela música ou comentando cada detalhe da imagem – que é semi-estática, semi-animada, mas bastante simples – até jovens que cresceram um pouco mais e agora passam pelo canal para comentar como aquela trilha acompanhou seus anos de escola ou de bacharelado: "Lofi Girl foi minha companheira de estudos durante toda a graduação. Pedi dois LPs de presente de formatura. Agora, no mestrado, esses vídeos ainda são a única coisa que realmente me ajuda a focar. Ótimo trabalho, pessoal!"
Outros comentários são de quem apenas quer registrar sua presença—em algum canto do cosmos, respirando, tentando se concentrar, estudando ou lidando com aflições mais profundas. Há uma enxurrada de mensagens de agradecimento: "Vocês me ajudaram a atravessar o ensino fundamental, o médio e, em breve, a universidade. Não posso agradecer o suficiente por todas as vezes em que me ajudaram a passar em provas e até a relaxar. Essa paisagem animada e hipnotizante me acalma. Obrigado, Lofi Girl, por tudo. Nunca vou parar de te ouvir!"
Se eu tivesse que arriscar um palpite sobre o segredo do sucesso do canal—além do fato óbvio de que há muita solidão no mundo e milhões de jovens estudando ao mesmo tempo, todos os dias e noites—eu diria que um de seus maiores trunfos está na nostalgia serena da trilha sonora, na quase imobilidade dos desenhos e na estética Ghibli. Essa menina parece ter saído da infância dos animês para entrar, junto com seu público, na adolescência e nos rituais solitários do estudo prolongado.
Há ali um senso de comunidade na distância, algo que, na minha juventude, nunca teria essa dimensão global. Nos meus longos períodos de estudo, eu só tinha consciência vaga de que minhas amigas provavelmente também estariam mergulhadas em seus próprios métodos e rituais anti-procrastinação. Jamais teria imaginado um mundo inteiro de estudantes, espalhados pelos fusos horários, concentrados sob a mesma trilha sonora—uma melancolia adolescente compartilhada e comentada em tempo real.
Laura Erber
Haia, 1 de março de 2025.
Legal! Não tinha ideia...
Vez ou outra recorro ao canal, cuja história eu não conhecia, adorei saber. Solidões povoadas, cidades que não dormem, a vida sendo observada pela própria. Ficção pura. Mais um texto ótimo seu.