OUTROS VENTOS #3 (Cinema)
A violência inacabada: notas sobre 'Ainda Estou Aqui' de Walter Salles
A violência é uma história que nunca se acaba de contar. No caso latino-americano, ou afro-indígena-europeu, essa violência tem camadas que se comunicam feito correntes oceânicas se tocando no fundo, em silêncio e empuxo denso.
Há um conto de Roberto Bolaño que fala sobre isso. Chama-se O olho Silva e trata da violência que nos persegue feito sombra e destino, um terror que nunca acaba de se consumir ou de sumir... Já escrevi outras vezes sobre esse conto que me persegue feito sombra e retorna em auxílio, pois fala da inescapável relação com a violência que nos circunda e molda, que nos obriga a tomar posição e a refletir.
O conto de Bolaño se comunica com tantas canções, filmes e histórias narradas. Ele poderia ser lido como uma continuação da canção de Milton Nascimento Para Lennon e McCartney, ou uma resposta ao livro de John Gerassi, The Great Fear in Latin America, que aliás aparece de relance sobre uma mesinha no primeiro filme brasileiro a tratar ficcionalmente da ditadura civil-militar, representando os dilemas do intelectual consciente, mas impotente. Falo de O Desafio, de 1965, dirigido por Paulo Cesar Saraceni.
Depois de dezenas de memes e trechos de entrevistas com a equipe do filme, finalmente consegui assistir Ainda Estou Aqui. E foi, talvez não por acaso, no lugar chamado THE EYE, em Amsterdã. A sala estava razoavelmente cheia, e cheia de sotaques.
Sobre o filme de Walter Salles, é redundante dizer que ele vem em boa hora e teve a habilidade de intervir na esfera pública. Claro, para isso, o filme concentra a atenção na história familiar, deixando o debate político-ideológico em segundo plano, embora onipresente na forma da tragédia que passa a integrar a vida dos Paiva.
O filme acerta ao eleger sua protagonista, ainda que certos personagens pudessem ter sido construídos com maior densidade dramática. A filha mais velha, por exemplo, talvez funcione para plateias estrangeiras, mas, para o espectador brasileiro, beira o clichê em sua construção. Mais significativa, porém, é a ausência de profundidade no retrato do menino que, adulto, viria a narrar essa história. Lamento que o filme não nos ofereça nenhum vislumbre de sua capacidade de observação ou de seu olhar singular sobre os acontecimentos que testemunha. Mesmo considerando que a intenção fosse mostrá-lo como uma criança comum – entretida com futebol, praia, cachorro e totó –, falta-nos uma cena que revele sua individualidade, ou algo que pudesse indicar que aquele menino se transformaria no narrador dessa devastadora história familiar.
Mas nada disso invalida a força e poder de alcance do filme, que se concentra acertadamente em Eunice Paiva. O filme aí se reconecta com a força dos primeiros cinemas fascinados pelo poder do rosto. Não posso deixar de pensar em Dreyer, em Bergman, em Ozu, em Godard, em todos os cineastas que fizeram do rosto feminino uma paisagem de emoções complexas e irresistíveis. Assim como A Paixão de Joana D'Arc, de Dreyer, esse filme é um processo e uma paixão – no sentido de revelar, ainda que fragmentariamente, uma Via Crucis dessa mulher – e faz isso concentrando a câmera sobre seu rosto em planos longos.


Enquanto o rosto de Renée Falconetti, no filme de Dreyer (1928), encarna a agonia exposta diante de um tribunal religioso infame, o rosto tenso de Eunice é a própria imagem da dor contida — uma dor que, ao se reprimir, se desdobra. Além da dor da perda e da injustiça, ela vive a dor de não poder expressá-la. É nessa contenção que reside sua força particular e o fascínio da personagem ao longo do filme.
Participamos de cada momento em que ela reprime a dor e o horror, mantendo a altivez e a dignidade mesmo no que seria um momento de desespero – essa história de dor é contada naquilo que seu rosto retém sem deixar explodir. Nem mesmo a cena de raiva deflagrada pela morte do cachorro é capaz de expurgar toda a dor que ela mantém presente em seu corpo e olhar.
No lugar de um questionamento fácil que viria a limitar a relevância da história dos Paiva sob o argumento de que essa era uma família burguesa, seria melhor encarar o filme de Salles como uma reabertura e um encorajamento para que outros filmes sejam realizados. A ditadura brasileira já possui vasta filmografia, mas ainda tem muitas histórias à espera de serem contadas, e é nessa constelação de possíveis versões e percepções que se tece a história do passado no presente, como material movente.
O filme de Salles, para mim, tem o grande mérito de mostrar que a história da ditadura é uma história inacabada, uma história em curso – portanto, uma história ainda a ser contada do ponto de vista do presente. A violência da ditadura, como toda história traumática, não é passado que passou – é uma temporalidade contraditória, que cada um vive a seu modo, sobretudo os que foram diretamente atingidos por ela. É uma história inacabada não apenas porque o corpo de Rubens Paiva jamais foi "devolvido" à sua família, mas porque o Brasil teve suas instituições democráticas à beira do abismo de outra ditadura em 2018; porque os torturadores de ontem, longe de enfrentarem a justiça, tornaram-se inspiradores da violência de hoje; porque as mesmas estruturas de poder que acabaram com vidas durante a ditadura continuam esmagando corpos nas periferias, nas aldeias indígenas e nos campos.
Nos créditos informativos, creio que falta uma informação relevante, sobretudo para o presente: a ditadura que assassinou Paiva e milhares de outros brasileiros foi financiada e teve apoio direto dos Estados Unidos e das elites empresariais nacionais. Essa informação tornaria a força de denúncia do filme ainda mais atual, já que agora o autoritarismo, que tantos latino-americanos e asiáticos conhecem bem, está se voltando mais explicitamente para a própria população estadunidense e para a Europa, que olha estarrecida para esse novo inimigo transoceânico.
Mas, voltando a Eunice, a Bolaño e à história ainda pouco contada dos nexos entre os movimentos de resistência política através do continente americano, gostaria de arriscar dizer que Eunice Paiva é a figura que encarna aquilo que o diretor chileno Patricio Guzmán mostra em sua trilogia da memória, que inclui os estupendos Nostalgia de la Luz e El Botón de Nácar. Guzmán foi um dos únicos cineastas contemporâneos capazes de revelar, com uma sagacidade poética e reflexiva deslumbrante, como a violência colonial contra as populações nativas do continente se relaciona com a violência da ditadura.
Ao se formar em Direito aos 47 anos e se tornar uma figura de referência na luta pelos direitos dos povos indígenas brasileiros, Eunice estava justamente conectando essas camadas de violência, que se entrelaçam sob os mares de nossa memória nacional, sempre incompleta e esparsa. Sua atuação junto à FUNAI e seu papel no processo que levou à demarcação das terras Krikati e Awá, no Maranhão, e Xikrin do Rio Cateté, no Pará, demonstram como ela transpôs sua própria experiência de injustiça para uma luta mais ampla pelos direitos humanos.
E para insistir no que escrevi acima – que o filme de Salles nos faz querer ver e fazer mais filmes (livros, peças, canções) sobre as figuras e histórias da ditadura –, eu desejaria, a partir do seu filme, um outro que mostrasse detidamente a dimensão jurídica da luta de Eunice. Tanto sua complexa batalha legal relacionada ao desaparecimento do marido quanto sua persistente jornada até obter o certificado de óbito, além de sua dedicada atuação junto aos povos indígenas. Um filme que revelasse, por exemplo, como ela teve que navegar pelos labirintos do sistema judiciário cúmplice do regime que torturou, matou e desapareceu com seu marido – e como essa experiência moldou sua compreensão ampla e profunda das estruturas de poder e opressão no Brasil que abarcam o seu caso individual e vão muito além dele, infelizmente.
Um filme que instiga o desejo de debate – e de mais cinema – merece aplausos. Engana-se quem vê nisso uma renúncia à percepção crítica ou à visão política. É essencial compreender o cinema dentro da dinâmica cultural e, neste caso, para além das fronteiras nacionais, já que ele foi claramente concebido como um material potente para articular um debate em um contexto mais amplo.
No fim da projeção no THE EYE, o primeiro comentário que ouvi veio de duas argentinas: Muy lindo, muy lindo… disseram, com aquele tom de encantamento que sugere tanto apreço quanto a impossibilidade de expressar tudo em palavras.
Laura Erber
Haia, março de 2025.