OUTROS VENTOS #
Notícias de um romance
Enquanto trato de concluir um romance, preparo-me intermitentemente para voltar à poesia. Não é que o romance exija uma dicção especialmente refinada, na verdade, é justamente o contrário. A dicção banal, em prosa, requer um esforço particular, assim como o efeito de oralidade num conto ou a sensação de progresso numa longa doença.
A poesia, de repente, nos larga. Algo assim abrupto, como um e-mail burocrático pode ser romper, subitamente, toda uma demorada construção de acordos.
Vivendo fora do círculo de escrita do poema (bem diferente do seu círculo - ou circuito - de leitura concêntrica, etc) releio cartas cuja resposta — agora impossível, para sempre impossível, e por isso mesmo assombrada - passo vários dias a redigir no trem em movimento. O trem é o meu lugar preferido nessa eternidade das respostas latentes ou imaginadas para uma conversa que não exigia nada e onde, no entanto, tudo estava em jogo da maneira mais drástica - uma “felicidade drástica”, dissemos rindo.
As coisas muito intensas, quando terminam, deixam um ruído estridente, o rastro da lesma quando passa, o brilho, etc. Esses mosquitos…
O que dificulta o romance é o vai-e-vem do tempo, que num poema pode ser cósmico, epidérmico ou lógico, mas cabe no espaço compacto de uma página. Já revisar um romance é uma tarefa de outro tipo, que se desdobra e engole o tempo de outra maneira.
Tento entender se os poemas são cartas de expediente, respostas ardentes ou surtos de candura. O que não escrevo é para evitar os remorsos de alguém que se perdeu na ambígua disposição de atravessar uma fresta para o passado e ali permanecer. Esperando, esperando... e nada.
Constato meu crescente desânimo com o circuito literário e me pergunto se haveria como não passar por isso.
Nas fábulas que escrevíamos havia sempre alguém incapaz de sepultar um grande amor, alguém que partia, como um samurai sem mestre ou um mentecapto, a vagar sem rumo pelos campos pestilentos.
Eu era a areia ocre, você o cheiro das amêndoas. Depois do pandemônio havia sempre um vento entrando pela varanda.
Não há pedra no sapato, no meio do caminho, nem foto na parede, nada. Só uma pedrinha bôba mas pesada, com acento antigo, latejando no fundo do coração bem vagabundo, só que firme, e, dependendo dos dias, até risonho.
O prédio ainda me assombra.
Permanece ali, depois do fim, como uma montanha imóvel. Um castelo calado sobre o lago, assistindo tudo que a maquinaria da cidade oferece, o sol que grita, os cães soltos, o dia em pedaços.
Assombra porque parece nos guardar ali. Como se ainda fosse possível abrir a porta, e encontrá-los intactos no silêncio do calcário.
Laura Erber
2 de Junho de 2025.