Retraduzindo literatura brasileira
a tradutora dinamarquesa Tine Lykke Prado comenta as novas traduções de Clarice Lispector, Machado de Assis e Mário de Andrade
Inauguro este espaço com um depoimento da amiga e tradutora Tine Lykke Prado. Embora provavelmente seja desconhecida para a maioria dos leitores brasileiros, ela é a mais importante tradutora de literatura brasileira atualmente em atividade na Dinamarca.
Muito se tem falado sobre as traduções para o inglês de célebres autores brasileiros, e embora desejemos que a literatura brasileira seja mais reconhecida globalmente, muitas vezes acabamos por reproduzir a tendência de hipervalorizar o contexto anglófono, em detrimento de outros espaços onde a literatura brasileira também circula. E isso ocorre muitas vezes graças ao trabalho de excelentes tradutores, que também atuam como comentadores e divulgadores, quando não também agentes dos autores que admiram. Este primeiro texto é uma modesta contribuição para ampliar esse olhar e valorizar o papel vital das traduções em línguas diversas.
Lykke Prado é formada em Estudos Literários pela Universidade de Copenhague e possui Mestrado em Literatura Comparada pela USP. Ela traduziu para o dinamarquês obras de grandes nomes da literatura brasileira, como Raduan Nassar, Machado de Assis, Clarice Lispector, Milton Hatoum e Graciliano Ramos, além dos portugueses Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe e Djaimilia Pereira de Almeida.
Aqui, Tine Lykke Prado compartilha suas experiências e reflexões sobre o processo de retradução e as particularidades de traduzir a linguagem e o estilo de autores brasileiros para o dinamarquês.
"Dez anos atrás, comecei a retraduzir A hora da estrela de Clarice Lispector porque me causava dor a tradução feita em 1989… Naquela época, Clarice Lispector ainda era muito pouco conhecida na Dinamarca, e é possível que o tradutor tenha achado o texto muito estranho ou não tenha captado corretamente o português brasileiro. Naquele período, ainda não existia uma crítica de tradução mais consistente na Dinamarca, o que gerava grande liberdade para os tradutores, especialmente no caso de línguas menos comuns, como o português.
O resultado foi um livro bem distante do texto original, sem as características linguísticas de Clarice Lispector, sem o tom clariceano, e com uma série de mal-entendidos. Então, propus-me a limpar o texto das "jogadas dinamarquesas", ou seja, aproximar a tradução do texto original. E agora, 30 anos depois, Clarice Lispector já é conhecida e tem seu público fiel aqui na Dinamarca, o que de certo modo permite uma maior liberdade na tradução, mantendo as peculiaridades do texto original, assim as palavras estranhas e expressões bem clariceanas podem surgir de forma estranha também em dinamarquês. Quer dizer, não quis modificar nada na linguagem singular dela, mas deixá-la comparecer no dinamarquês, sem tentar torná-la mais legível ou digerível. Além disso, para traduzir A hora da estrela, pesquisei o uso do português, no contexto nordestino, e também expressões e conceitos nordestinos, o que me permitiu traduzir melhor a fala das personagens.
Foi mais ou menos a mesma história com minha retradução de Memórias póstumas de Brás Cubas. Na velha tradução (1953), faltaram muitos trechos do texto original, provavelmente porque o tradutor não entendeu, e era comum que os tradutores deixassem as incompreensões de fora, enquanto outros simplesmente inventavam trechos que não existiam no texto original.
O caso da primeira tradução de Macunaíma de Mário de Andrade (1989) não é muito diferente. Porém, aqui, infelizmente, não se tratou de o tradutor não se aproximar ou negligenciar a linguagem original, mas sim do fato de que ele simplesmente não tinha conhecimento suficiente do português do Brasil. Era um tradutor formado no português de Portugal. Assim, o estilo da história ficou completamente diferente do texto de Mário de Andrade – é outro livro, tristemente diferente, para assim dizer. Por causa das expressões regionais do livro, o tradutor teve dificuldades em perceber as sutilezas de Mário de Andrade nas falas de Macunaíma, nas descrições da mentalidade e nas questões culturais. A velha tradução do livro é um testemunho das diferenças culturais entre o Brasil e a Dinamarca, especialmente no que se refere à palavra "preguiça". Isso porque, na Dinamarca, preguiça é exclusivamente negativa – uma das piores características pessoais em um país onde o trabalho é o fator mais importante e decisivo para o status na sociedade.
Assim, a versão dinamarquesa de 1989 revela valores dinamarqueses bem opostos aos brasileiros, como exemplificado na tradução da exclamação mais famosa de Macunaíma: "ai, que preguiça!", que se transformou numa exclamação grosseira e sem graça, algo do tipo "vai tomar no...". E isso se repete inúmeras vezes ao longo do livro. Eu diria que a figura de Macunaíma foi totalmente transfigurada e reduzida pela falta de sensibilidade do tradutor. Uma grande pena, e quero muito poder fazer uma tradução mais coerente com a proposta de Mário de Andrade, revelando o humor do autor que tanto falta na primeira tradução. Mas, para fazer isso, preciso realizar uma pesquisa na Biblioteca Mário de Andrade e conferir as expressões que ele recolheu durante a viagem que precedeu a escrita desse livro maravilhoso. Pretendo voltar às raízes do livro para transferir tudo de modo mais "andradiano" possível para uma língua tão pouco tropical como o dinamarquês."
Quando conversei com Tine há alguns anos em Copenhague, ela ainda estava imersa no trabalho de retraduzir Macunaíma, projeto que concluiu pouco tempo depois e resultou em uma bela edição da Multivers. Compartilho aqui abaixo a capa desta edição e o link da editora Multivers.
Tine Lykke Prado em seu apartamento em Copenhague.
Foto: Sille Veilmark