Quem acompanha as publicações da Zazie Edições sabe que venho anunciando, já há algum tempo, a chegada de um novo livro da autora franco-argelina Marie-José Mondzain. Finalmente, essa promessa está prestes a se materializar. É com grande alegria que assumo o desafio de editar Mondzain, autora do primeiro ensaio que escolhi traduzir para a coleção Pequena Biblioteca de Ensaios, ainda em 2016, quando a série começava a tomar forma de maneira intuitiva, inspirada pelos cursos que eu ministrava na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
O livro que lançaremos em breve, intitulado O Olhar Afiado: Intervenções, foi traduzido por Simone Petry e reúne textos, oriundos de palestras e intervenções públicas, que habitam a interseção entre arte, filosofia e estudos da imagem. Essa coletânea foi originalmente publicada pela editora DS-Fictions, em dois volumes – L’Image, Une Affaire de Zone e De l’Appétit de Voir –, na coleção Frontiers, dirigida por Hélène Clemente, que gentilmente nos cedeu os direitos de edição para o português.
Nos textos, Mondzain examina a relação entre a palavra e a criação artística, destacando a filosofia como uma linha de resistência fundamental contra os ataques e as manipulações do poder. Os temas abordados, com sua densidade e elegância características, incluem o medo das imagens, a hospitalidade ao desconhecido e a urgência de uma análise crítica das circunstâncias políticas contemporâneas. Mondzain é, sem dúvida, uma das vozes mais relevantes no campo dos estudos visuais hoje. Sua perspectiva filosófica e histórica sobre as imagens e suas conexões com o poder coloca-a em uma posição singular para refletir sobre como as redes de informação moldam, controlam e afetam nossa percepção do visível e do legível.
Para quem não a conhece, Marie-José Mondzain nasceu em 1942 em Alger. Ela iniciou sua formação na École normale supérieure de Sèvres e, posteriormente, construiu uma carreira acadêmica sólida, assumindo o cargo de diretora de pesquisa no Grupo de Sociologia Política e Moral, um centro de pesquisa colaborativo entre a École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e o Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Sua área de especialização é o estudo e conceitualização das imagens, abrangendo desde o iconoclasmo do período bizantino até as representações modernas, como na publicidade, propaganda e notícias, incluindo também as manifestações da arte contemporânea. Mondzain combina uma sólida carreira de pesquisadora com uma intensa participação no debate político contemporâneo. Sua atuação vai além do meio universitário, estendendo-se a programas sociais voltados para jovens considerados "radicalizados" e participação ativa em protestos e movimentos de contestação política. Em 30 de novembro de 2015, foi uma das signatárias do "Appel des 58", que proclamava: "Nous manifesterons pendant l'état d'urgence", um chamado à manifestação durante o estado de emergência na França. No ano seguinte, esteve presente no movimento Nuit debout, na Praça da República em Paris, no marco das mobilizações sociais que exigiam mais democracia e direitos.
Mondzain combina filosofia e história do pensamento, desafiando-nos a refletir criticamente sobre o papel das imagens e da escolha das palavras na construção da sociedade contemporânea. De certa forma, sua trajetória intelectual a coloca numa posição privilegiada para pensar não só o sistema de imagens e suas relações com o poder, mas também o modo como as redes de informação e de organização social do visível e do legível nos controlam, moldam e afetam. O seu breve ensaio intitulado Sideração, que publicamos em 2016 pela Zazie, trata exatamente disso. Num momento como o de agora, em que fica explícito novamente que os espaços digitais em que interagimos e “compartilhamos” (palavra que merece um escrutínio) determinam o modo de funcionamento da comunidade e sua própria natureza, o texto de Mondzain sobre a cultura do medo e do sobressalto torna-se muito pertinente.
A edição deste novo livro foi um processo longo – e um tanto arrastado, é verdade, devido às inúmeras idas e vindas e interrupções causadas por meus outros compromissos profissionais. No entanto, o percurso trouxe muitas trocas frutíferas. Contamos com a leitura atenta da primeira versão da tradução por Sérgio Flaksman, os comentários importantes de Angela Vianna, que revisou e preparou os textos, e, claro, a parceria dedicada de Simone Petry, que os traduziu. Todos nos debruçamos sobre o desafio de transpor para o português brasileiro o texto fluido e sinuoso - mas nunca propriamente hermético - e a cadência peculiar do escrever-pensar de Mondzain, marcada pelo que o idioma francês permite em sua sintaxe e cadência próprias.
Deixo aqui um pequeno trecho do ensaio que trata da relação entre arte e filosofia, para melhor entender o que faz o olhar ser afiado, ou que exatamente pode “amolar” o corte do olhar. Mondzain se inspira nas falas do personagem do amolador de facas do belo filme Sicília! (1999) de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Em uma época em que boa parte do que se denomina filosofia perdeu sua capacidade de corte – tendo-se resumido a ser uma espécie de orientação vocacional envernizada, ou reprodução empolada e diluída de observações sociológicas – a ideia de Mondzain é resgatar a capacidade de corte e a graça ardente da faísca que o atrito consegue produzir.
(…) Mas, para participar de uma luta, para lutar no mesmo combate, armas são necessárias, e elas precisam estar afiadas. Ora, o amolador de Straub-Huillet nos disse que nada mais lhe dão para amolar. Digo que o corte é que já não existe mais, incluindo o corte que deve separar aquele que fala daquele que mostra. É necessário se certificar de que algo do olhar seja aguçado de modo que a imagem pareça intrigante para o filósofo, e que o filósofo permaneça intrigante para os artistas. Ou seja, temos de aceitar que existe uma violência do heterogêneo se quisermos que surjam faíscas, que algo esquente e que alguma coisa realmente aconteça na hipótese de algum atrito entre arte e filosofia. Vejam o que acontece no girar da roda do amolador... Surgem faíscas. Para afiar é preciso aquecer, é preciso fazer arder. Essa perda do corte que torna a filosofia amorfa e mesmo esponjosa, pela qual ela é inteiramente responsável, pode ser observada nas atrelagens cúmplices ou clientelistas do artista e do filósofo. Cada artista pode ter o seu filósofo predileto e, inversamente, cada filósofo escolhe seu próprio séquito de criadores. Assim, no contexto deste festival da fotografia, organizado sob o signo do preto e branco, tomo essa referência da primeira tradição fotográfica como exemplo para a questão do corte.”
O trecho acima me parece uma defesa implícita da relação crítica com o mundo (com e não contra ele), ou seja, do atrito, do contato que gera faíscas — como forma de manter uma conexão instigante com o mundo, com o que, no mundo, nos provoca a pensar, sentir e a existir. A incompreensão generalizada sobre o papel da crítica hoje e sua diluição estão, sem dúvida, intimamente ligadas à questão do corte e ao olhar afiado que Mondzain aborda.
Deixo aqui alguns links:
• Sideração – Publicado na Pequena Biblioteca de Ensaios, Zazie Edições. Disponível para download gratuito: link para o livro
• Confiscação – Coletânea de ensaios publicada pela Relicário Edições: link para o livro
• A Imagem pode matar? – Livro sobre a violência do visível, disponível exclusivamente na edição portuguesa: link para o livro
Foto: Maxime Sirvins.