[foto ©Laura Erber]
TELESCÓPIO
[Louise Glück]
Há um momento, assim que o olho se afasta,
em que você esquece onde estava
porque parece ter vivido um tempo
em outro lugar, no silêncio do espaço.
Deixou de estar no mundo.
Foi parar num outro lugar,
onde a vida humana não significa nada.
Não é mais criatura num corpo.
Existe como existem as estrelas,
partilhando sua calma e imensidão.
Então está de volta ao mundo.
À noite, no ar frio da serra,
desmontando o telescópio.
Depois de tudo você percebe
não que a imagem era falsa
mas que era falsa a relação.
Torna a ver o quão distante
tudo está de tudo o mais.
*tradução Laura Erber e Sergio Flaksman
[incluído em Averno, 2006]
Deixar o Facebook, afastar o olho…
Hoje, 27 de janeiro, ao encerrar minha conta no Facebook, ocorreu-me lembrar do poema acima, de Louise Glück.
Nos últimos 15 anos, usei o Facebook de diversas formas e, apesar de alguns episódios desagradáveis, incluindo stalkers e um ataque orquestrado por um pequeno grupo com intenções difamatórias, minhas experiências, no geral, foram muito positivas. Conheci pessoas interessantes, criei novas vozes, testei argumentos, ri bastante e mantive ou retomei o contato com pessoas que não vejo há décadas.
Entrei no Facebook enquanto escrevia minha tese de doutorado e cuidava de meu filho ainda bebê, em noites brancas que acabariam se tornando o meu horário de escrita mais produtivo. Criei meu primeiro perfil ainda relutante, a convite de amigos poetas com quem antes me correspondia por email. Desde o início dos anos dois mil, brincávamos de enviar poemas de nossas mais recentes descobertas. Era o puro entusiasmo compartilhado. Hoje soa até algo pueril, e pensando bem, nenhum de nós conseguiu manter aquela leveza do período inicial. De certa maneira fomos todos sendo empurrados para formas mais convencionais de usar as redes. Mas naqueles começos, eu era Draguta Momolescu, uma personagem meio pândega que acabaria por habitar o meu primeiro romance. Tive alguns fãs, e irritei pessoas que insistiam em achar que eu era… o Carlito Azevedo que na verdade era Hélène Bessette. Foi, sem dúvida, a fase mais divertida e inventiva no Facebook, quando interagia praticamente apenas com poetas e tradutores.
A interação naquela época, sob pseudônimo, tinha algo de gracioso e permitia tanto o jogo de cabra-cega quanto a troca irreverente, ainda sem o fel que viria se espalhar pela plataforma. O anonimato não era um refúgio ou um disfarce, mas um artifício poético.
Mais tarde, tornei-me Zazie Edições, representando uma espécie de alma irreverente da editora, até que infelizmente o Facebook me forçou a ser "eu mesma", impondo o uso do nome próprio e exigindo comprovações de identidade por meio do envio de documentos.
A partir daí, a rede se transformou em outra coisa — algo bem diferente — espelhando o que o próprio Facebook começava a exigir de seus usuários: o enquadramento civil. Não era apenas a questão de comprovar a identidade, mudavam também as formas de interação - modelagem mais oficial de comportamentos, profusão de perfis profissionais, alguns desproporcionalmente empertigados, etc - até que a rede social se converteu em uma espécie de caricatura da esfera pública. Ainda assim, acredito ter sido para mim um espaço relevante para acompanhar pessoas cujo trabalho ou reflexão admiro, e tentar entender o sentido mutante do verbo “compartilhar” em nossa época.
Mas aquilo que parecia ser um espaço promissor em termos de relações e formação de opinião foi se tornando mais rígido, travado por algoritmos que incentivam polarizações, paranóias, agressões gratuitas, além das vigilâncias constantes e redução dos diálogos a uma economia de troca.
Esse enrijecimento não pode ser atribuído apenas às políticas da Meta ou à mercantilização das redes. Ele também reflete a crescente incapacidade de experimentarmos espaços de dissenso, dúvida ou simples ludicidade, como fazemos num bar ou botequim. Entre a vitrine e a trincheira, agravado pelos golpes digitais que se alimentam cada vez mais sofisticadamente de nossas informações, perdi o interesse e comecei a me preocupar mais com o uso sacana da massa textual ali compartilhada através dos anos, inclusive para a produção de uma voz textual que sirva a tentativas de extorsão.
Mas o que mais me afastou do Facebook, confesso, tem a ver com a perda de algumas pessoas próximas e com o modo como a plataforma explora nossa memória afetiva. É algo que Roberto Simanowski articula em seu ensaio Madeleine Digital — o modo artificial como nossa memória vem sendo moldada por notificações e curadorias feitas por algoritmos. Simanowski questiona como essa mediatização altera a forma como nos relacionamos com a memória e, no limite, com o próprio tempo, distanciando-nos da subjetividade do ato de recordar. Empresas como o Facebook transformam nossas histórias pessoais em produtos de consumo, lucrando com a indução a uma espécie de nostalgia digital que, ao mesmo tempo, hiperdramatiza e congela nossas memórias mais preciosas. Não quero me lembrar de X ou Y ou de tal ou tal dia e lugar porque o Facebook me faz relembrar, em geral com o intuito de que escreva um comentário comovido e preencha os espaços que o algoritmo (ainda) não alcança…
Todos esses anos desejei que os murais fossem menos rígidos, que o design da plataforma fosse menos tosco e infantilizante, e que os comentários aparecessem em um layout menos entrincheirado.
Sempre me deprimiu pensar que os primeiros usuários do Facebook foram uns 10 rapazes de Harvard, incluindo gente daquelas fraternidades da elite norte-americana que de vez em quando apareciam nos filmes de sessão da tarde.
Ao encerrar minha conta hoje, senti que desmontava um aparato, afastava o olho do telescópio não em busca do cheiro da mata na serra (quem dera! aqui o inverno é cinza e inodoro), apenas afim de sentir mais a cadência das conversas no real, sem a distorção dos botões de like e corações à espreita.
Aqui de quebra um Cabral, e uma outra espécie de telescópio. E um alô especial para o pessoal do grupo dos cinéfilos do Franklin – eles sabem do que se trata - melhor comunidade virtual! Ainda torço para encontrá-los no Amarelinho um dia.
POEMA
[João Cabral de Melo Neto, 1941]
Meus olhos têm telescópios
espiando a rua
espiando minha alma
longe de mim mil metros.
Mulheres vão e vêm nadando
em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
compõem minhas visões mecânicas.
Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.
[em Pedra do Sono, 1942]
Interessante depoimento. Um ponto que você toca e que me causa também muito incômodo. O layout do Facebook, unilinear. Minha relação com o Facebook é muito menos engajada que a sua e nem peguei o tempo em que a rede era mais "fechada", mais clube de amigos vinculados por interesses comuns.