VIDA ENTRE LIVROS #4
Tradução como mediação cultural, desafio e amizade: uma conversa com Paula Abramo
Tradução como mediação cultural, desafio e amizade:
uma conversa com Paula Abramo
por Laura Erber
[©Paula Abramo, arquivo pessoal]
Dando continuidade às conversas com tradutoras e tradutores em atividade, tive o prazer de dirigir algumas perguntas a Paula Abramo, tradutora baseada no México, que tem levado para o espanhol a obra de diversos e importantes autores brasileiros. Para ela, traduzir do espanhol para o português é como atravessar uma ponte que parece curta, mas reserva significativas armadilhas e produz vertigem. Aqui ela comenta os ardis dessa aparente proximidade linguística — falsos cognatos, ritmos desencontrados, sentidos que deslizam — e fala da tradução como uma convivência íntima e prolongada com o texto alheio: amizade que exige escuta, paciência e coragem para assumir escolhas imperfeitas. Abramo também pondera sobre o suposto grau de dificuldade atrelado aos gêneros e entende que, entre a tentação da transparência e o risco da invenção, a tradução, especialmente de poesia, é um trabalho de tensão permanente.
Seu trabalho de tradução abrange diversos gêneros — da poesia ao romance, dos contos aos ensaios. Como cada um destes territórios textuais exige de você diferentes estratégias? A poesia oferece maior liberdade para experimentação do que a prosa?
Eu diria que não necessariamente. Quer dizer, na minha experiência, um gênero literário não traz atrelado, em si, maior possibilidade de experimentação do que outro. Nesse ponto, concordo com Haroldo de Campos: a dificuldade cria um espaço para a liberdade, mas essa dificuldade, essa densidade, pode aparecer tanto numa obra de ficção como num poema. Além disso, existem poemas muito pouco desafiadores e romances com uma prosa deliciosa, altamente complexa. Quando traduzo, não penso em gêneros literários. Preocupo-me com o próprio texto e com as estratégias que ele vai me exigir de maneira única. E cada texto é um mundo!
Quais autores brasileiros representaram seus maiores desafios tradutórios? Foram questões estilísticas, particularidades lexicais, variações entre registros formais e informais, ou elementos culturais que mais pareciam resistir à travessia entre línguas?
Ah, são vários... No momento estou trabalhando com Euclides da Cunha e me sinto por vezes numa espécie de déjà vu dos tempos em que traduzi Raul Pompeia. São autores de uma prosa tão densa que eu diria que é uma prosa quase carne, uma prosa que dá pra morder, pra pegar com a mão, quase sólida. Absolutamente excessiva na sintaxe, com orações imensas, carregadas de subordinações. Diante desses autores, é preciso fazer jus ao excesso, a essa exacerbação e, ao mesmo tempo, procuro não simplificar nem atualizar o vocabulário, o que significa que, preciso encontrar termos que também são pouco usados no espanhol. No caso de Euclides, respeitar o uso de tecnicismos, muitos já em desuso. Não é um trabalho passivo, de preservação, mas um trabalho ativo de pesquisa e procura de equivalentes.
Outra autora extremamente complexa é Hilda Hilst. Traduzi dois livros dela e ambos foram um desafio enorme. Nela existe também essa vertigem de uma sintaxe complexa, mas ao mesmo tempo há muitos neologismos, além da desobediência deliberada das normas de pontuação e inclusive de ortografia. E o mais complicado: nela coexistem registros de linguagem variadíssimos, que se atravessam, se justapõem de maneiras sempre muito inesperadas. Não é possível baixar a guarda: seria um erro, eu acho, polir as arestas ou conter essas cabriolas do estilo. É preciso dançar junto, desobedecer junto.
Tem também Luiz Ruffato. No caso de Ruffato, os desafios principais são a polifonia, as vozes que se entrecruzam e interrompem, o registro coloquial e o vocabulário ultraespecífico. É um léxico muito preciso e concreto, que focaliza a matéria e, portanto, muito variado. Muitas expressões e palavras não estão nos dicionários, porque são utilizadas somente em alguns contextos sociais e geográficos bem específicos ou pertencem a certos socioletos, inclusive idioletos. Nesses casos sempre foi fantástico contar com a ajuda generosa do autor para esclarecer as dúvidas. E, claro, depois é preciso achar uma maneira de recriar aquilo. Eu, no caso, optei por utilizar os recursos da minha variante linguística, que é o espanhol do México. Eu acho que não dá para traduzir textos tão marcados com esse imperativo do mercado que é espanhol neutro (e que não existe em lugar nenhum). Acarretaria uma perda imensa. Então, claro, sei que corro o risco de apresentar aos leitores uma coisa híbrida: os operários brasileiros acabam falando como operários mexicanos (assim espero), mas sem deixar de ser brasileiros - de comer farofa, de cantarolar em português ou apostar no jogo do bicho. É um risco. Outros tradutores possivelmente optarão por soluções diferentes, também válidas. Acho que uma das virtudes desses textos complexos é que exigem múltiplas traduções.
Agora estou me preparando para traduzir Mário de Andrade, mas não estou pronta para falar dessa experiência, porque ainda estou no choque dos primeiros rascunhos e das primeiras tentativas. Já fiz um glossário de mais de 400 termos...
[©Paula Abramo, arquivo pessoal]
Pensando então nessa dimensão da dificuldade, mas sem entrar no caso específico do Mario, quais elementos da literatura brasileira você percebe que inevitavelmente se perdem na tradução para o espanhol, e quais surpreendentemente saem enriquecidos nesse processo?
Essa pergunta é difícil de responder. Se pensarmos que o México é o país da América Hispânica mais afastado do Brasil, uma possível resposta seria que essa distância, não apenas geográfica, mas também cultural —em outras palavras, o profundo desconhecimento que o leitor comum no México tem da história do Brasil, da cultura, da natureza, da literatura do Brasil, fora alguns estereótipos— pode ser um fator que atrapalha ou dificulta a recepção dos textos. Estamos muito, mas muito longe. Nesse sentido, eu acho (porque sou fã das notas de rodapé e dos prólogos) que é necessário todo um trabalho de contextualização, em que esses pontos, em que poderia haver perdas (e que podem ser milhares de coisas, desde o nome de pratos típicos até alusões finamente irônicas ou abertamente paródicas de Machado de Assis à política do seu tempo), se tornem possibilidades de ganho.
Em que medida você considera que o tradutor extrapola a função técnica ou poética e criativa para atuar como mediador cultural e até mesmo crítico literário? Como você habita esses papéis?
Eu acho que o papel do tradutor sempre é o de um mediador cultural e sempre envolve uma dose importante de crítica, uma dose importante de pesquisa. Traduzir é fazer tudo isso ao mesmo tempo. Não dá para separar esses papéis. Isso não significa que um tradutor ou tradutora seja um crítico literário. Mas o seu trabalho envolve muita crítica. O problema é que, em geral, não se pensa que um tradutor faça tudo isso quando traduz. E, por isso, muitas vezes, não se abrem espaços para que, quem traduziu, fale dos textos que traduziu (quer dizer, que analisou, que pesquisou, que recriou ou reescreveu). É uma pena, porque o lugar de fala das tradutoras e tradutores é interessantíssimo nesse sentido: é um lugar único, atravessado por vários eixos.
Para além desse trabalho, sim: eu sinto que a gente às vezes extrapola, quando, por exemplo, além de traduzir (que é fazer tudo isso que eu falei acima e muitas outras coisas mais), ainda fazemos o papel de agentes literários. Esse tipo de extrapolação é cansativo, porque envolve a procura de editoras, a escrita das propostas e projetos em documentos mais ou menos formais, a procura de editais, e muitas vezes também o vínculo com autores ou herdeiros de direitos. É um trabalho que obedece à paixão, ao desejo de fazer com que um determinado livro exista no nosso mundo. Eu habito esse papel algumas vezes, mas, como exige muito esforço, só faço isso quando de verdade gosto de uma obra e quando sinto que ela vai conseguir criar um diálogo importante com os leitores e leitoras daqui. Como às vezes fico cansada ou desanimada pela falta de respostas e resultados, já passei por períodos em que só aceitei encomendas. Depois de um tempo, sempre volto à luta.
Vou te colocar aqui três perguntas encadeadas: como você avalia a presença e recepção de autoras e autores brasileiros no cenário literário mexicano atual? Existem muitas percepções estereotipadas sobre nossa literatura no meio editorial quando se trata de introduzir autores contemporâneos? O intercâmbio entre literatura brasileira e hispano-americana ainda depende principalmente de iniciativas individuais ou conta com apoio institucional consistente?
Eu acho que, nesse sentido, passamos por um bom momento. No México há várias editoras que estão publicando autoras e autores brasileiros. Tanto editoras independentes quanto editoras mais comerciais. A Fondo de Cultura Económica, que é uma editora do Estado, aumentou nos últimos anos o número de obras brasileiras traduzidas e reeditadas graças a um convênio com a Embaixada do Brasil no México. Claro que o Brasil é imenso e ainda há muito trabalho a fazer e muitas maravilhas a traduzir. Mas essa diversificação da oferta de obras brasileiras, felizmente, ajuda a desfazer possíveis estereótipos, como poderia ser, por exemplo, a ideia da literatura brasileira como uma literatura exótica, ou tropical, ou sensual (por muitos anos, Jorge Amado foi leitura preponderante), ou centrada na violência (penso em Rubem Fonseca, amplamente vendido e traduzido).
Suspeito que as iniciativas individuais são importantes na construção dessas pontes. Muitas coisas acontecem por essa via. Mas não só. Depois de traduzir uns sessenta livros, posso dizer que a maioria foram encomendas. Uma minoria (doze) foram iniciativas individuais.
Dentre as iniciativas de apoio institucional mais relevantes posso mencionar, além do convênio entre a Embaixada do Brasil no México e a FCE nos últimos anos, o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, da Fundação Biblioteca Nacional, e o Protrad (Programa de Apoyo a la Traducción), do México. A importância desse tipo de apoios é fundamental. Muitos livros não existiriam sem eles. Muitas editoras nem consideram a possibilidade de publicar traduções se não for com algum apoio.
O que inspirou a criação do projeto de poesia "Muiraquitã" que você coordena junto com Minerva Reynosa e Efraín Velasco ? Poderia compartilhar um pouco sobre o que motivou a sua criação e as realizações mais significativas dessa iniciativa?
Muiraquitã é um projeto de fanzines de poesia mormente brasileira, mas não só. Também vamos incluir alguns e algumas poetas mexicanos ou chicanos. Iniciamos o projeto no início de março passado. Então é um projeto novinho e ainda em processo de definição. A ideia é publicar um número por mês: um pequeno zine impresso (em tradução) que vamos distribuindo de mão em mão nos eventos aos que somos convidados. Publicamos também num blog os poemas originais, o PDF do fanzine para quem quiser imprimir em casa. A ideia é divulgar os poemas também nas redes sociais. O projeto partiu do desejo de fazer uma ponte mais informal, caseira e ancorada nos nossos próprios interesses poéticos, que tem a ver com a irreverência, a experimentação, a crítica política e o jogo interlinguístico. Já publicamos os dois primeiros números. O primeiro contém poemas do livro Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas, de Bruna Kalil Othero, selecionados e traduzidos por mim, e o segundo é um conjunto de poemas tomados de Paubrasilia alucinata (O pau do Brasil), de Wilson Alves Bezerra, selecionados por Minerva e traduzidos por Jesús Montoya. Quem quiser visitar o blog pode acessar o link https://muiraquitazine.blogspot.com e seguir no insta a conta @muiraquita.fanzinera (o perfil ainda está em fase inicial, mas em breve os primeiros conteúdos serão publicadosO projeto gráfico é de Efraín Velasco, que é um multiartista.
Invertendo um pouco a perspectiva: na sua visão, quais autoras e autores hispano-americanos contemporâneos mereceriam maior atenção das editoras brasileiras e deveriam ser mais amplamente traduzidos e lidos no Brasil?
Eu gostaria de aproveitar essa pergunta para falar de autores mexicanos que não ocupam um lugar central no espectro do mercado nem têm agentes literários, como é o caso dos poetas em geral. Preciso confessar que sou uma grande admiradora de poetas da minha geração, e sei que vou deixar, involuntariamente, muitos fora dessa lista (sempre é difícil responder a perguntas como essa). Gostaria de citar os nomes de poetas como Luis Felipe Fabre, Óscar de Pablo, Xitlalitl Rodríguez Mendoza (Sisi Rodríguez), Maricela Guerrero, Alejandro Albarrán, Minerva Reynosa, Efraín Velasco, Rodrigo Flores, Sara Uribe, Alejandro Tarrab... Um pouco mais velhos, Tedi López Mills e Ricardo Castillo. Todos eles, desafios grandes e gostosos para qualquer tradutor. E se houver alguém à procura de um desafio ainda maior, Gerardo Deniz. Poderia continuar com a lista, mas prefiro me limitar à poesia mexicana contemporânea.
[©Paula Abramo, arquivo pessoal]
Entrevista magnífica! Pra mim é a maior honra ter sido traduzida por essa gênia e estar na coleção Muiraquitã ❤️😍 p.s. ansiosa pra ler as traduções de HH
Que preciosa essa troca!