VIDA ENTRE LIVROS #5
O grande desafio e a tradutora aos risos: uma conversa com Eunice Suenaga
O grande desafio e a tradutora aos risos:
uma conversa com Eunice Suenaga
por Laura Erber
Dez volumes do Genji Monogatari [Harvard Arts Museum, Photo © President and Fellows of Harvard College ]
Dando continuidade à série de conversas com tradutoras, trago aqui algumas reflexões de Eunice Suenaga. Neta de japoneses, nascida no interior de São Paulo, Suenaga formou-se em Letras (Japonês-Português) pela USP e nos últimos anos construiu uma sólida trajetória como tradutora de literatura japonesa. É especialmente reconhecida por suas versões das obras de Haruki Murakami para o português, entre elas O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, Homens sem mulheres e Pássaro de corda. Seu trabalho meticuloso e nuançado se destaca pela sensibilidade com que recria o estilo de Murakami no português brasileiro.
Também traduziu o excelente Peitos e Ovos de Mieko Kawakami que, segundo ela, rendeu muitos risos e choros ao longo do trabalho. Atualmente, dedica-se à tarefa de traduzir o clássico japonês Genji Monogatari, cuja autoria é atribuída à dama da corte Murasaki Shikibu. Considerado o primeiro romance da literatura mundial, as narrativas do Genji representam um desafio colossal até mesmo para estudiosos japoneses, quanto mais para quem assume a tarefa de traduzi-lo.
Murakami tem um estilo narrativo muitas vezes descrito como “ocidentalizado”. Você concorda com essa perspectiva?
Concordo que o estilo de Murakami é “ocidentalizado”, o que facilita a tradução para o português. Já as escritoras como Mieko Kawakami e Yoko Ogawa têm um estilo próprio, e usam expressões às vezes não muito convencionais no japonês. Nesses casos, procurei reproduzir de uma forma não muito convencional também no português. Como ficava um português um pouco “diferente”, acho que os revisores acabaram alterando alguns trechos.
Em comparação com o português, o japonês atual já é ambíguo: muitas vezes o sujeito não está explícito, ele precisa ser deduzido pelo contexto. Mas o japonês clássico – por exemplo, a linguagem usada em Narrativas de Genji, do século 11 – é mais ambígua ainda. Para começar, no texto manuscrito do período Heian não havia pontuação – nem vírgula nem ponto final -, não havia aspas nem separação em parágrafos. Só as poesias waka, de 57577 moras (sílabas), eram destacadas em linha separada e recuada.
Os manuscritos mais antigos que conhecemos hoje de Narrativas de Genji são do período Kamakura, ou seja, cerca de dois séculos após o período em que viveu a autora, Murasaki Shikibu. Hoje, há várias publicações dessa obra em japonês clássico, e elas se baseiam nesses manuscritos. Para facilitar a compreensão, são adicionados recursos como separação em parágrafos, pontuações, marcadores de diálogo e conversão para o kanji (no manuscrito são usados mais hiragana). E esses recursos variam conforme a interpretação do estudioso que faz a edição.
No japonês clássico, o sujeito é omitido mais do que no japonês contemporâneo. Como a relação hierárquica era bem mais rígida, com expressões que indicam vários níveis de respeito ou humildade, quando há uma grande diferença hierárquica, é possível identificar de quem se trata. Por exemplo, ao imperador ou à imperatriz são usadas expressões que indicam máximo respeito. Mas quando a diferença hierárquica não é muito grande, muitas vezes é difícil concluir de quem se trata, quem está falando.
Além disso, algumas expressões tinham um significado mais amplo do que hoje. Por exemplo, o verbo miyu do japonês clássico, hoje miru, que significa ver, podia significar, além de “ver” ou “encontrar-se”, “casar-se” ou “manter relação sexual”, dependendo do contexto. E a expressão yo no naka, que hoje significa sociedade, no japonês clássico indicava também o relacionamento conjugal, ou a relação entre um homem e uma mulher.
Há muitos trechos da obra que dão margem a algumas interpretações diferentes. Há uma passagem em que um personagem masculino, vendo Genji, pensa: “quero ver como mulher”. Historicamente é interpretado como se o personagem, vendo Genji tão atraente, pensa: quero me relacionar com ele como se ele fosse mulher. Mas há quem diga que pode ser o contrário: o personagem homem pensa: quero me relacionar com Genji, como se eu fosse mulher.
Você poderia falar um pouco sobre sua relação com o idioma japonês e de que forma esse trânsito contínuo entre línguas e culturas marca sua experiência pessoal e profissional?
Eu sou neta de japoneses, e meus avós e pais me obrigaram a estudar e falar o japonês desde criança. Em casa falávamos um japonês dos imigrantes, ou da “colônia”, como costuma ser chamado. Era um japonês mais simplificado, com mistura de dialetos de diferentes regiões do Japão e de palavras em português. Na casa dos meus pais havia mais livros em japonês do que em português, e acabei me familiarizando mais com os livros e mangás em japonês. Como morávamos no sítio, eu não tinha contato com o português no dia a dia, só pela TV, que na época só passava a Globo. Quando entrei na escola, com seis anos, comecei a me interagir em português com as professoras e colegas. Lembro que no começo entendia o que eles diziam, mas não conseguia falar.
Com dezessete anos me mudei para São Paulo, comecei a trabalhar com tradução, e entrei no curso de Letras da USP. Depois de me formar em Letras Português, Japonês e Alemão, vim estudar no Japão com a bolsa do governo japonês. Fiz mestrado e doutorado em literatura clássica japonesa na Universidade de Tóquio.
Para mim, foi um desafio fazer tradução para o português, pois durante toda a minha vida tinha lido mais livros em japonês do que em português. Aprendi muito com os editores, preparadores, revisores e outros tradutores.
Algumas obras contemporâneas, como as de Mieko Kawakami, abordam questões sociais que envolvem as idiossincrasias da sociedade japonesa. Como transmitir essas camadas para o leitor brasileiro sem perder as nuances do original?
Em Peitos e ovos de Mieko Kawakami (Intrinseca), a protagonista usa o dialeto de Osaka (Kansai) quando se sente à vontade, e o japonês considerado “padrão” (dialeto de Tóquio) quando está nervosa ou tímida. As pessoas de Kansai são consideradas mais alegres, espontâneas. Quando as personagens falavam em dialeto de Kansai, procurei traduzir para um português mais descontraído. Ou traduzia explicando: “disse a fulana em dialeto de Osaka”.
O japonês marca mais intensamente o status social e relações hierárquicas do que o português brasileiro. Como você traduz essas marcas sem sobrecarregar o texto? No caso de personagens femininas, há desafios específicos na forma como gênero e discurso se manifestam no original japonês e como devem ser vertidos para o português?
A relação hierárquica no Japão é menos rígida do que em alguns países asiáticos, como na Coreia, e hoje em dia não há tanta diferença na fala entre homens e mulheres como havia até aproximadamente meados/segunda metade do século 20. Mesmo assim, os pronomes “eu” e “você” e as expressões que indicam respeito ou humildade podem mudar dependendo do locutor, se é homem ou mulher, e também com quem está falando, se é com alguém hierarquicamente superior ou inferior. No primeiro livro que eu traduzi, O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, de Murakami (Alfaguara), havia dois amigos universitários com um ano de diferença. A linguagem deles era diferente, o mais novo tratando de forma mais respeitosa o mais velho, mas como no Brasil ficaria estranha um tratar o outro como “o senhor” sendo que os dois eram amigos com um ano apenas de diferença, traduzi como “eu” e “você”.
Pensando nos autores que você já traduziu, qual apresentou um grande desafio linguístico e qual foi, até agora, o mais prazeroso de verter para o português? No caso de uma tradução coletiva, como em Tédio Terminal, como vocês decidiram a voz final do texto? Houve muitas divergências estilísticas entre os tradutores?
O livro que foi mais difícil de traduzir, até agora, foi Cavalo selvagem de Mishima (no prelo). O romance se passa no início do século 20, mas havia uma citação longa inspirada num texto escrito no final do século 19, antes da modernização do japonês escrito, e o texto era muito complexo. Além disso os costumes e dos utensílios usados pela classe dos samurai não são nada familiares hoje. E diferente de obras clássicas como Narrativas de Genji, com várias edições com tradução para o japonês contemporâneo e notas explicativas, não havia tantos estudos, e tive que consultar dicionários frequentando bibliotecas.
Agora estou traduzindo Narrativas de Genji, sem previsão de lançamento nem editora. Apesar de haver vários estudos, como se trata de uma obra antiga escrita numa linguagem arcaica, há margem para algumas interpretações. Não há muita variação de uma versão para outra, como no caso de O livro do travesseiro, de Sei Shônagon, e outras obras do mesmo período, em que a diferença pode ser de alguns parágrafos de um manuscrito para outro. No caso de Genji, um estudioso que viveu entre o final do século 12 e início do 13, Fujiwara no Teika, estabeleceu a versão que ele considerou a mais correta, e desde então não houve tanta variação. Entretanto, ainda é possível notar pequenas diferenças de um manuscrito para outro. Algumas edições atuais, apesar de se dizerem fiéis, alteraram o texto original, tentando “corrigir” o erro do copiador. Justamente por haver muitos estudos sobre a obra, na hora da tradução, temos que decidir em qual das versões ou interpretações vamos nos basear.
Eu gosto muito do estilo de Yoko Ogawa. Até agora traduzi dois livros dela, Piscina, Diário de Gravidez e Dormitório: três novelas (Estação Liberdade), e um outro que ainda não foi lançado. Traduzir Peitos e ovos de Mieko Kawakami (Intrínseca) foi prazeroso, nunca tinha dado tanta risada ou chorado tanto, traduzindo um livro.
Quanto ao Tédio Terminal, de Izumi Suzuki (DBA), tradução conjunta com a Rita Kohl e Andrei Cunha, não chegamos a discutir muito o estilo antes da publicação.
Você percebe mudanças no interesse dos leitores brasileiros por literatura japonesa ao longo dos anos?
Sim. Quando eu vim ao Japão, no final do século 20, eram poucos os autores japoneses traduzidos: Mishima, Tanizaki, Banana Yoshimoto. Mas hoje, quando vamos a livrarias, encontramos uma grande variedade de autores japoneses. Vejo o aumento do interesse das editoras também, pois recebo cada vez mais propostas de diferentes editoras. Infelizmente tenho recusado quase todos os trabalhos, pois estou traduzindo Narrativas de Genji.
Como definiria a tarefa da tradutora (de literatura japonesa) em uma frase?
Para mim, o trabalho de tradução continua sendo um grande desafio.
Adorando essa série, que bom saber mais sobre o trabalho da Eunice, com o qual já me deparei em alguns momentos de leitora.
Muito boa a entrevista! e melhor ainda contarmos com uma tradutora como essa no Brasil, traduzindo o Genji!