Dan Flavin, Sem Título, 1987 [Imagem: Florian Holzherr, © Stephen Flavin / 2024; accesso: https://www.wallpaper.com/art/exhibitions-shows/dan-flavin-dedications-in-lights-kunstmuseum-basel]
Não me ocorre agora quem afirmou que as listas servem para que esqueçamos o que está fora da lista. Sempre que aceito participar de listagens, não tarda para que questione a pertinência desse dispositivo ou minha própria contribuição. E, no entanto, continuo a aceitar convites como esse, talvez por ainda acreditar que, o exercício é interessante e que, apesar de seu valor limitado — e frequentemente discutível —, ainda seja possível nelas destacar algo que seja digno de atenção.
Foi o que ocorreu com a lista dos melhores livros brasileiros do século 21 organizada pela Folha. O exercício, para mim, tinha dois méritos: reunia um número considerável e intrinsecamente diverso de leitores; e exigia uma justificativa, ainda que sucinta, que explicitasse as escolhas e destacasse o valor literário dos livros indicados. Em tese, algo simples. Na prática, nem tanto.
Minha primeira decisão foi restringir a seleção a livros de conto, romance e teatro. Tenho publicado poesia com alguma regularidade desde 2002 e, talvez justamente por isso, hesitei em incluir livros de poesia. Não por falta de obras relevantes, pelo contrário, mas porque o campo da poesia contemporânea dificulta a aplicação de critérios minimamente compartilháveis. A poesia escapa com frequência às dinâmicas da recepção e da comparação que estruturam esse tipo de exercício. Além disso, avaliar livros de poesia no mesmo fôlego com que se avaliam romances ou coletâneas de contos me pareceu exigir outro tipo de dispositivo crítico, outro regime de leitura e mais tempo.
Para mim, “melhores livros” significa exatamente isso: os melhores livros — e não os melhores autores, os livros mais badalados, comentados, bem recebidos ou mais vendidos. O critério de escolha, embora inevitavelmente atravessado por uma subjetividade crítica, precisa manter um núcleo de exigência que vá além da repercussão ou da assinatura. Claro, haveria outros caminhos possíveis — por exemplo, listar os livros de maior impacto no campo literário e de seus discursos, na esfera pública ou semipública. Mas esse seria outro tipo de levantamento, com outros objetivos e outros riscos.
Teria alguns comentários a fazer, mas me atenho a apenas um: o resultado da lista, nos seus 25 mais votados, escancarou um vazio: a ausência de textos teatrais publicados em formato livro. Cito aqui um nome que merecia figurar: Grace Passô — não apenas por sua força dramatúrgica, mas pelo modo como encarna um gesto autoral singular, que tensiona cena, linguagem e política com rara inteligência formal e contundência expressiva.
Vale constatar — sem grande surpresa — a força que os temas em voga e a questão da representação exercem sobre as escolhas, assim como o peso de fatores como alcance midiático e projeção autoral. Felizmente, há também na lista autores que conseguem aliar uma perspectiva original — inclusive de classe, gênero e raça — a uma linguagem consistente com seu projeto.
Listando livros no novo regime da visibilidade cultural
O predomínio atual de uma pós-crítica ou da crítica sob o domínio da cultura da opinião, em que a função da crítica, sobretudo em suplementos e redes, se aproxima da curadoria — ou seja, indicar, promover, destacar obras no excesso de produção disponível — torna ainda mais complexa a avaliação das listas e de sua repercussão. Se antes o crítico concentrava demasiados poderes de criar ou destruir reputações, hoje a crítica (literária, cinematográfica, de artes, etc.) por mais contundente que seja, tende a ser tomada como apenas mais um tipo de influência qualificada, sem muita ressonância num mercado simbólico que combina reputação, redes de afiliação e marketing cultural em sistemas novos para nós, velozes e fugazes.
Nesse espaço, a crítica mais nuançada, ou menos desbragadamente entusiasta, tem dificuldade de se estabelecer, pois não gera cliques ou likes, e tem menos legibilidade no campo da curadoria algorítmica ou digital. Esta última, opera aliás dentro de uma lógica de listas e rankings, formas que se retroalimentam por meio de métricas de engajamento, popularidade e recorrência. O algoritmo não apenas responde ao gosto médio: ele o forma, o consolida e o retroprojeta como desejo coletivo. Desse modo, livros que já possuem certa visibilidade tendem a ser mais visíveis; autores já consagrados ou midiatizados tornam-se ainda mais presentes. Trata-se de um jogo feroz de visibilidade e invisibilidade, em que a ausência equivale ao apagamento e a repetição constante gera uma aura de relevância automática. A “popularidade” torna-se critério (por vezes inconsciente), e não consequência, da leitura.
Nesse cenário, é interessante que um jornal proponha uma grande “lista humana”, que reintroduza a instância de um sujeito que lê, pensa e justifica suas escolhas. Não se trata aqui de defender o retorno nostálgico a uma hierarquia canônica ou de pretender um julgamento definitivo, mas de sustentar, ao menos, uma ideia de leitura que não abdique de um critério consciente em nome de uma adesão apressada ou de uma destruição performática.
Listar é sempre um gesto de eleição — e, por isso, também de exclusão. A validade das listagens talvez resida menos na ilusão de abarcar a complexidade da produção nacional ou na pretensa imparcialidade das escolhas, e mais na dificuldade que temos em lidar com as tensões entre diferentes perspectivas sobre o fenômeno literário.
Exigimos diversidade no campo da produção literária e em suas formas de circulação, mas, diante de uma nova hegemonia crítica que entrelaça escolhas humanas e não humanas, talvez seja necessário um esforço maior para refletir sobre aquilo que as listas alcançam e não alcançam — sobre o jogo intrincado entre presença e ausência. Algumas respostas são bem simples, mas nem todas.
Laura Erber
Haia, 25 de Maio de 2025.